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Um lutador chamado Mesquita.

Guarulhos, 05 de novembro de 2001

ImagemPoucos brasileiros conhecem o nome de Luis Roberto Mesquita, empresário de Guarulhos, município famoso apenas por abrigar o maior aeroporto do país. Mesquita e Guarulhos, um cidadão e uma cidade obscuros no cenário nacional, tornaram-se nos últimos anos uma síntese do embate entre o velho e o novo Brasil, entre a corrupção e a moralidade. Entre 1997 e 2000, o cidadão Mesquita derrubou um prefeito, desmantelou o mercado de propinas da Câmara de Vereadores, colocou três próceres atrás das grades, desembarcou um candidato do primeiro turno e catapultou outro à vitória. Se Guarulhos deixou de ser um faroeste encravado no Estado mais rico da nação, deve a façanha ao herdeiro do Comercial Mesquita, tradicional bazar de brinquedos e utilidades domésticas.

Depois de tantas batalhas, o comerciante descobriu que a guerra é permanente. Para março próximo, ano eleitoral, prepara um seminário sobre a corrupção pública do país. “É preciso manter o medo latente para que a roubalheira não volte”, diz. “Guarulhos é como o Brasil. Não dá para deixar o assunto morrer.” De olho no PT, partido que ajudou a instalar no poder, Mesquita é um cidadão vigilante.

Práticas duvidosas, como a distribuição de relógios e medalhas em que o “a” de Guarulhos desponta na forma da estrela-símbolo da legenda, têm azedado a esperança do comerciante de finalmente se dedicar apenas aos negócios, à mulher e às três filhas. Mesquita esperava mais do partido que tantas críticas fez à falta de decoro quando estava na oposição. “Não temos a corrupção exposta de antes, mas uma série de bobagens que podem fazer com que a velha política ressurja”, preocupa-se. “Eu esperava maior empenho na investigação das falcatruas dos governos passados.”


Mesquita é processado por dois ex-prefeitos. Os ataques o deixam ainda mais animado

Luis Roberto Mesquita é uma personalidade curiosa em um país onde não se boceja nos labirintos da política sem uma intenção oculta. Não tem amigos acima do interesse público. E não tem interesses privados no público. Até hoje, ninguém entende por que faz o que faz. Filho de uma família tradicional de Guarulhos, herdeiro de um confortável conjunto de negócios que envolve uma loja e participações em um hotel e um condomínio residencial, poderia viver em sossegado berço. Em vez disso, escolheu conviver com ameaças de morte, ser protegido por escolta policial nos momentos cruciais, escudar ataques pessoais de qualidade rasteira. “Faço porque minha cidade era bonita e a transformaram num horror”, resume.

O empresário pertence a uma estirpe de cidadãos que não se encolhe diante da sombra superlativa da capital, no outro lado do Tietê. Ama a caótica Guarulhos, que cresceu desordenada, rica e pobre ao mesmo tempo, só perde para a capital em repasse de ICMS e tem 20% da população padecendo em 300 favelas, fonte inestimável de votos para a política local. Com 1,1 milhão de habitantes, a segunda mais populosa cidade de São Paulo nem sequer possui uma estação rodoviária.

Aos 42 anos, Mesquita pode ser o exemplo mais bem-acabado de um tipo de cidadão forjado por um país que descobriu o caminho do combate à corrupção. “Os horários políticos me enojam, não suporto mais ouvir falar em Jader Barbalho. Mas aos poucos o cerco vai se fechando e a corrupção diminuindo”, testemunha.

A microcâmera que gravou as denúncias contra os vereadores repousa no museu da família

Para Mesquita, tudo começou com uma assinatura. A dele. Até a campanha municipal de 1996, vivia um cotidiano metódico. Acordava às 6h10, levava as filhas à escola às 6h50, às quintas-feiras adicionava uma incursão à feira, trabalhava nos negócios da família e dirigia a Associação Comercial e Industrial de Guarulhos. Não fumava, não bebia, exceto uma taça de vinho em eventos, jamais comia fora de hora. Poucos filmes, músicas antigas, livros de auto-ajuda, preceitos do Dalai Lama.

Em 1996, o candidato do PDT, Néfi Tales (hoje no PST), lançou-se como o nome capaz de sepultar o coronelismo local. Pediu a Mesquita adesão a seu plano de governo. O comerciante concordou, desde que nele fosse incluída uma cláusula em que os signatários se comprometiam a denunciar eventual descumprimento das promessas. Tales venceu a eleição. Quando começaram a pipocar sinais de súbito enriquecimento, o comerciante ficou inquieto. “Minha assinatura estava lá”, diz. “Era um compromisso.” Por causa de um valor tão fora de moda quanto a honra, a corrupção sofreu uma das maiores derrotas da história recente de um município brasileiro.

Afrontado pela própria assinatura, o pacato pai de família tornou-se um inimigo infernal. Em busca de provas da locupletação do prefeito, vasculhou cartórios e empreendeu incursões pelo Estado. Com a ajuda de outros cidadãos empenhados na mesma causa, revelou um patrimônio financiado pelos cofres públicos que incluía de fazendas a palmeiras imperiais. Depois de pelo menos sete pedidos de cassação recusados pela Câmara de Vereadores, Tales foi afastado pelo Ministério Público em 1998.

Para compreender melhor o significado de um compromisso firmado é preciso deslizar pela linha reta do caráter de Mesquita. Ele nem sequer tem um time do coração, jamais mancha a camisa de adrenalina. “Como posso torcer se esses jogadores mudam de time o tempo todo? Não entendo. Parecem políticos mudando de partido.” Assim é Mesquita. E assim foi quando o vice de Néfi Tales, Jovino Cândido (PV), alçado à condição de administrador, procurou-o desabafando sobre a cobiça de alguns vereadores, que pediam de R$ 10 mil a R$ 40 mil para aprovar a cassação do prefeito. Sem contar os achaques a fornecedores para fazer tilintar a famosa caixinha. O segundo encontro foi na sala de jantar de sua casa, com a presença do então deputado estadual Elói Pietá (PT), hoje prefeito de Guarulhos. O empresário preparou-se: no interior de um arranjo de flores uma microcâmera apontava para eles. Atrás de um quadro retratando mosteras, libidinosa planta da flora brasileira, gravadores sem fio. Sentado à mesa de refeições da família, Cândido relatou todo o esquema de corrupção pouco antes do Natal de 1998. “Gravei para me proteger”, justifica Mesquita.