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Aos 70 anos, carteira de trabalho retoma o pique

Guarulhos, 21 de março de 2002

A carteira de trabalho completa hoje 70 anos, com uma guinada que está intrigando economistas e estudiosos. Na contramão das sucessivas quedas de participação no mercado de trabalho desde o início dos anos 90, a fatia dos empregos com carteira voltou a crescer a partir do ano passado. A parcela subiu de 43,6% em 2000 para 45% em 2001 e poderá chegar a 46,1% este ano, conforme projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ou seja, o tamanho da participação do emprego formal crescerá 5,8%.

O documento foi criado por decreto, em 21 de março de 1932, assinado pelo então presidente da República, Getúlio Vargas. Trazia espaços para anotações policiais e acabou funcionando também como espécie de “atestado de conduta”.

Recentemente, ganhou um novo formato, que chegará a São Paulo e ao Rio de Janeiro no segundo semestre deste ano.

Há 22 milhões de trabalhadores com registro em carteira, segundo o Ministério do Trabalho. Outras 80 mil carteiras estão perdidas e guardadas nas delegacias regionais do ministério no País.

Reestruturação e fiscalização

No início, a carteira de trabalho era também sinônimo de honestidade, lembra o compositor Guilherme de Brito, que a tirou em 1936, aos 14 anos. “Antigamente, nos lugares que eu freqüentava, se a polícia chegasse e você não tivesse carteira de trabalho, era cana”, conta. Seu primeiro registro foi do emprego de office-boy na Casa Edson, vendedora de discos, rádios e vitrolas do centro da cidade. O documento virou peça de museu.

O economista e editor-adjunto do Boletim Mercado de Trabalho do Ipea, Luiz Eduardo Parreiras, explica que ainda está estudando os motivos dessa recente “formalização do emprego”. Já há, de antemão, duas explicações: o intenso processo de reestruturação, sobretudo na indústria, desde o início da década passada, chegou ao fim e estão mais eficientes os processos de fiscalização do trabalho.

Fora da economia formal, os demitidos da década passada engrossaram, em grande parte, o chamado trabalho por conta própria e sem carteira, gerando informalidade, explica Parreiras. No segundo semestre de 2000, o trabalho com carteira recuperou espaço. Pelo lado da fiscalização, a média anual de 275 mil carteiras assinadas até 2000, fruto da fiscalização, quase duplicou para 520 mil ao ano, em 2000 e 2001.

Para este ano, a expectativa é de que o crescimento econômico propiciará “razoável geração de empregos, basicamente formais”. Mantida a tendência do ano passado e o crescimento previsto de 2% no total do pessoal ocupado, a fatia dos empregos com carteira subirá para 46,1% – bem abaixo, contudo, dos 53,7% em 1991. Além da distância para a fatia no passado, o rendimento dos empregados com carteira caiu mais: -13% entre dezembro de 2000 e de 2001, acima da queda de 6,7% para os sem carteira e 5,8%, no caso dos que trabalham “por conta própria'.

'Legislação deve ser revogada'

“É um símbolo de uma legislação trabalhista que tem de ser revogada em bloco, não em partes”, opina o economista da UFRJ e do Instituto Estadual de Trabalho Social (IETS), André Urani, citando que em outros países não existe sequer o documento e que basta um contrato de trabalho entre as partes. Para Urani, é necessária uma legislação que permita baratear a contratação do emprego formal e “trazer ao mundo das coisas visíveis tudo o que é considerado informal”.

A aposentada Iracema de Souza Reis, 75 anos, tirou sua carteira de trabalho em 1945, aos 18 anos, para o primeiro emprego formal, como caixa de um supermercado (na época, os supermercados eram municipais, não privados). Na prática, começou a trabalhar informalmente aos 14 anos, em Miracema (RJ), como auxiliar de costureira.

“Como trabalhadora, foi meu documento mais importante, e acredito que é assim para toda pessoa que trabalha. Sem ela, fica mais difícil obter os direitos”, diz Iracema. Depois do primeiro emprego, trabalhou em escritórios, sempre com carteira assinada, até 1971, quando se aposentou.