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O dia que durará 60 anos

Guarulhos, 08 de fevereiro de 2010

Neste dia 2 de fevereiro, dia de festa no mar, em Brasília, recebo uma ligação à tarde: “Você está na equipe de deputados que embarca amanhã, às 2h30 da manhã, para o Haiti”.

A viagem não tem marca no meu passaporte, não existe controle de entrada nem de saída naquele país. Chegamos (Raul Jungmann, Emiliano José, Colbert Martins, Cláudio Cajado, e eu) e fomos recebidos pelo Embaixador do Brasil no Haiti, Igor Kipman, e sua equipe.

Quando, em 12 de janeiro, assisti chocada na televisão aqueles gritos que vinham de dentro do ar cheio de poeira, aquela menina de roupa escolar rodopiando ao lado do corpo da colega ferida sem entender o que acontecia e impotente diante da tragédia do seu povo, a criança de cócoras com o olhar misto de dor e de perdido no espaço, pessoas atordoadas andando de braços abertos, eu comecei a me preparar para ir ao Haiti. Liguei para o presidente da Câmara Michel Temer, e para o presidente da Comissão de Relações Exteriores, Damião Feliciano, e lhes disse: “Precisamos que um grupo de deputados brasileiros vá lá, ajudar e se solidarizar com o povo e autoridades do Haiti, com militares e civis brasileiros também atingidos pela tragédia. Contem comigo.”

Eis um pouco do quadro apresentado pelo presidente do Haiti, René Préval, que nos recebeu:

Num tom calmo, começou se solidarizando com as famílias brasileiras que perderam entes queridos e com o Brasil. Ressaltou a importância do papel do Brasil desde 1994 no Haiti, na eliminação da situação de violência que as gangues impunham a Porto Príncipe, principalmente a Cité Soleil e Bel Air, as duas maiores favelas da cidade. Reafirmou a necessidade da continuação da presença das tropas brasileiras, pela circunstância agora de que a polícia de seu país perdeu boa parte do seu efetivo.

Dados passados pelo presidente: estima-se a morte de 170 mil pessoas e ainda há corpos nos escombros. Mais de um milhão de pessoas estão desabrigadas. 250 mil residências terão que ser reconstruídas. Hoje eles vivem a estiagem do inverno a 30 graus. Em breve, chegará a estação das chuvas. A estação dos furacões está próxima. Em 2008, quatro furacões assolaram o país. Para completar, Porto Príncipe foi assentada numa falha tectônica ativa, que está em sua atividade natural e implacável. O terremoto não durou meio minuto e o resultado que todos viram foi como se várias bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki tivessem caído no seu país. O presidente Préval afirmou: “Não se pode ir contra a natureza, mas pode-se preparar melhor para enfrentar estes fenômenos.”

Ainda o presidente: “A cidade inchou com o êxodo rural. Agora o movimento é inverso. Mais de meio milhão estão retornando para seus parentes nas províncias. É preciso dar atenção às províncias. 80% da população vivem da agricultura. É preciso desenvolver a agricultura e a província para dar trabalho, comida e fixar a população no campo. É prioritário construir estradas, pontes, canais de irrigação, casas, fazer um movimento de descentralização e políticas de desenvolvimento para as regiões do país. Vários países estão nos ajudando, cada um tem seu programa. O maior problema é a falta de uma coordenação única e atacar o problema em duas frentes: na capital e em outras cidades. É preciso criar um Fundo Único que neste momento esteja sob a coordenação do Haiti, para que estas questões sejam resolvidas”.

Ao sairmos, o presidente me abraçou e falou meu nome num misto de carinho, emoção, e esperança de que sua voz seja ouvida.

Estivemos no centro paroquial onde morreu a Dra. Zilda Arns. No meio dos escombros, cadernos de teologia. Em silêncio prestamos homenagem a ela e às 300 crianças que ali estão sepultadas. Sem equipamentos, não conseguiram ainda chegar à parte das salas no piso inferior. Um dos assessores da embaixada me contou que chegaram ao local horas depois do desabamento, mas sem luz elétrica tiveram que voltar na manhã seguinte. Conta como resgataram o corpo da Dra. Zilda e num lençol o levaram no carro da embaixada, o mesmo que agora nos transportava. “Aí onde você está sentada, eu carregava o corpo dela”.

Em outra conversa, o Sr. Edmond Mulet, chefe da missão da ONU, afirmou: “Não existe registro civil de nascimento nem de óbitos, tudo está centralizado no cartório da Capital, que veio abaixo também”. A tragédia apaga a memória e o registro, ponto inicial e final da existência perante a nação. Vidas reais ceifadas e que legalmente nunca terão existido. Para completar, a ONU também perdeu seus registros, e de seu comando muitos morreram.

Mulet nos lembrou que a infraestrutura do país foi construída dos anos 20 aos 40, e que já estava deteriorada em face dos furacões e da falta de conservação. Para reconstruir, vai levar, se começar agora, de 50 a 60 anos. Que agora não é só ajuda humanitária, mas dar estrutura para o governo, pois o presidente e o primeiro ministro são sérios, e precisam ter recursos humanos e materiais para trabalhar na reconstrução do país.

Estivemos também na sede provisória da Câmara dos Deputados, e ali conversamos com o seu presidente e mais dois deputados. Na Câmara não houve mortos, só feridos, mas dois senadores morreram. As eleições que seriam em fevereiro não serão realizadas agora, porque nem se tem condições de saber quem está vivo ou está morto. Os deputados agradeceram a solidariedade do Brasil e de outros países da América Latina, que, mesmo tendo seus problemas internos de pobreza, de infraestrutura, e de eventos da natureza, olham também pelo Haiti neste momento extremo, em que, dezenas de milhares de vidas foram perdidas, entre os mortos muitos quadros intelectuais e quadros de governo com experiência, e parceiros internacionais que conheciam bem seu país. Até os símbolos mais destacados do país vieram abaixo: o palácio do Governo, da Justiça, do Congresso, a Catedral. É preciso, segundo eles, uma visão global para reconstruir a nação, um consenso nacional para recolocar de pé as instituições. Além da necessidade de uma reforma
constitucional e política, para consolidar a democracia, e outros problemas legais a serem resolvidos, como o registro da terra, a situação dos cerca de 4 milhões de haitianos que saíram do país.

As três questões prioritárias, levantadas pelo Executivo e Legislativo foram: primeiro, que a missão brasileira continue e que agora colabore no processo de defesa e reconstrução; segundo, que a ajuda seja bem coordenada, para que não fique só na Capital, mas chegue às províncias; terceiro, que o presidente Lula apresente e defenda, no encontro dos governos sobre o Haiti, a retirada das tarifas alfandegárias, o perdão da dívida externa, e um Fundo Soberano de reconstrução, sob a coordenação do Haiti.

Vimos por toda a parte filas e mais filas na espera de alimentos. Sacos que são transportados na cabeça, na maioria por mulheres jovens, maduras e mais vividas andando com o testemunho da fome e da miséria. Em muitos sacos vimos as marcas do poderio americano. Impressionante também as filas dos que tentam tirar visto para emigrar aos Estados Unidos.

Porto Príncipe é um enorme caos: multidões acampadas em frente ao cartão de visitas da República, o palácio presidencial, que querem emprego, que estão com muita fome, que olham em silêncio, entre as grades, para o palácio branco caído, que outrora foi um lugar onde depositaram suas esperanças. À noite, em grande parte da cidade não existe luz elétrica. Que do caos se faça luz.

A delegação de cinco deputados federais que lá esteve, além de um representante da UNE, saiu querendo rapidamente abrir este debate sobre o Haiti numa Comissão Geral da Câmara, onde a sociedade civil possa participar. Vamos dar pressa à aprovação da medida provisória do presidente Lula, para liberar rapidamente recursos na ordem de R$ 375 milhões para o Haiti. E votar o PL 737 de 2007, que agiliza o atendimento humanitário de catástrofes internacionais.

O Haiti precisa de recursos, tecnologia e de dar vez ao comando político da nação, com suas limitações sim, mas fruto da frágil democracia local. A era do protetorado, vide África, não deu certo. Este povo em agudo sofrimento, 95% negros, 5% de pardos e brancos, que em 1804 rompeu com as forças de Napoleão e se libertou, o primeiro país da América a abolir a escravidão, precisa muito de nossa solidariedade.

Janete Rocha Pietá é deputada federal pelo PT/SP