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Lavagem de dinheiro chega à indústria

Guarulhos, 02 de dezembro de 2003

Quando a esmola é muita, o santo desconfia. O velho chavão deveria começar a servir de regra para as empresas brasileiras na hora em que fecham negócios de peso. Elas estão se tornando vítimas de um golpe ainda pouco conhecido no país. Ele consiste no uso, por organizações criminosas, de empresas para lavar dinheiro proveniente de práticas ilícitas como tráfico de drogas, terrorismo, seqüestro ou corrupção a partir de uma boa proposta comercial. Até agora, os órgãos de combate à lavagem de dinheiro tinham conhecimento apenas de operações realizadas com o uso de empresas ligadas ao setor financeiro.

Um caso relatado por um consultor especialista no assunto que trabalha na investigação de crimes contra empresas no Brasil, demonstra o “modus operandi” da lavagem de dinheiro com o uso de empresas do setor industrial. Segundo ele, apresentou-se à área comercial de uma indústria multinacional com uma fábrica no Brasil um executivo de bons antecedentes profissionais que já havia trabalhado em empresas de porte no país. O executivo se dizia o suposto representante brasileiro de uma organização não-governamental (ONG) destinada ao financiamento de projetos sociais presente em vários países da Europa e nos Estados Unidos.

Segundo este executivo, a ONG no exterior havia liberado uma verba para que a filial brasileira iniciasse um programa de doações no país. Para isso, precisaria adquirir US$ 150 milhões em produtos vendidos pela multinacional. O pagamento ocorreria à vista, para garantir a compra, e a entrega da mercadoria seria feita em dois anos. O extenso prazo era justificado pelo fato de a ONG estar realizando um trabalho de estruturação que demandaria tempo. Após finalizada esta etapa, a ONG já teria à disposição os produtos para iniciar as doações. O contrato de compra e venda proposto pela ONG à empresa estabelecia que, se ela desistisse do negócio seis meses antes da entrega dos produtos, receberia apenas 85% do valor pago de volta, ajustado por juros do mercado americano.

Embora o departamento comercial da empresa tenha ficado entusiasmado com as vantagens do negócio, o contrato foi submetido à apreciação da área jurídica, que desconfiou dos seus termos e do alto valor do negócio. Os advogados da empresa buscaram informações sobre a ONG – com página na internet em inglês e detalhes de sua atuação mundial – para dar o aval ao negócio. Também pediram à ONG que detalhasse o produto desejado – se era o produzido na data de fechamento do negócio ou na data da entrega, já que ele provavelmente se tornaria obsoleto.

Dez dias após o primeiro contato, o executivo e outros dois representantes da ONG se reuniram com a área jurídica da empresa para detalhar o contrato. Após a reunião, o jurídico desaconselhou o negócio, achando-o arriscado. A ONG, então, dobrou a proposta comercial: compraria US$ 300 milhões em produtos. Pressionado, o departamento jurídico passou a investigar o suposto cliente, indagando a origem do dinheiro e o banco que iria transmiti-lo. “A ONG foi se complicando nas respostas”, conta o consultor, que acompanhou o caso de perto. A inconsistência das informações prestadas pela ONG foi tanta que a empresa desistiu do negócio. Mas a proposta foi novamente ampliada, desta vez para US$ 400 milhões, pela ONG, que sugeriu que a matriz da empresa seria comunicada da resistência da filial brasileira em fechar negócio de tal porte. Sem saída, a empresa comunicou o fato à matriz, que decidiu que faria a operação, desde que ela fosse comunicada aos órgãos de combate à lavagem de dinheiro para o rastreamento dos recursos. A minuta do novo contrato foi feita e entregue aos representantes da ONG, que nunca mais fez qualquer contato com a empresa.

A mesma ONG, segundo o consultor, tentou aplicar o golpe em uma outra multinacional que tem fábricas no Brasil, dizendo-se uma instituição que sublocava equipamentos para outras entidades filantrópicas, como hospitais, escolas públicas e creches. O valor da proposta comercial era de US$ 400 milhões em aquisições e o contrato proposto era exatamente igual ao anterior. A negociação seguiu praticamente os mesmos passos e a proposta aumentou para US$ 800 milhões e US$ 1,1 bilhão ao longo dos dias. Mas, da mesma forma que a empresa anterior, a multinacional considerou o negócio arriscado e desistiu da operação.

De acordo com o especialista, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do Ministério da Fazenda, identificou situação parecida ocorrida com uma universidade particular. “Uma ONG propôs a aplicação de recursos em um fundo a ser criado pela universidade, que poderia ter acesso apenas aos lucros provenientes da aplicação do dinheiro, já que o principal deveria ser devolvido”, diz o consultor. A universidade fez a operação, mas o dinheiro foi barrado quando ingressou no Brasil, e o Coaf está investigando a universidade por suspeita de lavagem de dinheiro.

A nova prática de uso de empresas de outros setores que não o financeiro nada mais é do que uma variação das já tradicionais formas usadas por quadrilhas para a lavagem do dinheiro. As organizações criminosas, com recursos provenientes de crimes depositados em um banco – muitas vezes de paraísos fiscais -, precisam colocar o dinheiro na economia formal, por meio do sistema financeiro ou outra instituição que “lave” o dinheiro. “Esse tipo de esquema é mais uma corrente dos sistemas clássicos internacionais de lavagem de dinheiro”, afirma Lorenzo Parodi, italiano radicado em São Paulo que presta serviços de consultoria financeira e patrimonial a empresas e realiza cursos de capacitação para a prevenção à lavagem de dinheiro. “Os melhores canais para a lavagem de dinheiro deixaram de ser os bancos, que estão mais visados pelos órgãos de controle”, diz. “Ao passo que muitas outras empresas não têm qualquer obrigação de tomar nenhuma atitude de combate a este tipo de crime.”

O presidente do órgão, Marcos Caramuru de Paiva, afirma que a tipologia desta forma de lavagem de dinheiro é conhecida, mas nunca havia visto atingir empresas do setor industrial. “Nunca houve nenhum comunicado deste tipo no Coaf”, diz. Apenas empresas ligadas ao setor financeiro, como bancos, factorings e companhias de cartões de crédito, ou de setores como loterias e sorteios, bingos, jóias e pedras preciosas e objetos de arte e antigüidades são obrigadas a informar operações suspeitas ao Coaf.

De acordo com o diretor da agência de controle de risco Kroll no Brasil, Eduardo Sampaio, quando a legislação começa a cercear as atividades financeiras, a lavagem de dinheiro cresce em outros segmentos. “Ao longo dos últimos cinco anos, desde a edição da Lei nº 9.613 – a Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro – se observa um uso muito maior de outros segmentos da economia”, afirma.

Sampaio também relata história semelhante à ocorrida com as multinacionais. Ele conta que um dos dez maiores escritórios de advocacia de São Paulo foi procurado por um suposto cliente – um executivo de uma empresa de grande porte da Venezuela – que necessitava de assessoria para uma operação de aquisição de uma empresa brasileira do setor químico, de porte médio e familiar, que estava à venda. Depois de oito semanas de negociações e apresentação de documentos, o venezuelano pediu ao escritório que disponibilizasse sua conta bancária para a transferência do dinheiro da aquisição da empresa, pois ainda não tinha firma constituída no Brasil. Os sócios do escritório concordaram, e depois do dinheiro transferido, o executivo comunicou aos advogados a desistência do negócio, pedindo a devolução do dinheiro – feita em cheque administrativo, descontados os honorários. Mais tarde, o escritório descobriu que a empresa não existia. O cheque administrativo foi compensado na Europa em nome de uma pessoa que não era a mesma que havia negociado com a banca de advocacia. “O escritório lavou dinheiro sem querer, mas não foi negligente, porque a empresa venezuelana tinha contrato social e todos os documentos”, diz Sampaio.

Da forma como ocorreram os casos, é possível deduzir que várias empresas do país já tenham sido vítimas de esquemas de lavagem de dinheiro sem sequer desconfiar. O presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Gabriel Jorge Ferreira, afirma que para evitar que as empresas sejam envolvidas neste tipo de golpe seria necessário aumentar a realização de auditorias no Brasil. Segundo ele, das 100 maiores empresas do país, 57 não estão obrigadas a realizar auditoria, pois são sociedades limitadas. “O Brasil é um dos países menos auditados do mundo”, afirma. Segundo ele, do universo de cerca de 1 milhão de empresas existentes no país, apenas 2.500 são submetidas a auditoria. O Brasil tem um auditor para cada 25.000 habitantes, enquanto nos Estados Unidos há um auditor para cada 2.327 habitantes e no Reino Unido, um para cada 1.316 habitantes.

De acordo com Marcelo Alcides Carvalho Gomes, diretor da GBE Peritos & Investigadores Contábeis e membro da Association of Certified Fraud Examiners – entidade que congrega investigadores de crimes de vários países do mundo -, a alternativa para que as empresas não se tornem vítimas de golpes de lavagem de dinheiro é uma técnica já bem conhecida: “know your client” (conheça seu cliente). “Além disso, propostas comerciais muito boas em épocas de crise econômica devem ser vistas com desconfiança”, afirma.

O presidente do Coaf, Marcos Caramuru, afirma que o número de comunicados de operações suspeitas vem crescendo no Brasil, mas a tarefa é árdua. O universo de instituições que são obrigadas a relatar casos suspeitos inclui 38 mil imobiliárias – sem contar os corretores de imóveis -, 9 mil casas lotéricas, 168 seguradoras, 13.950 empresas que operam com bancos – como as factorings – e quase mil companhias abertas e 66 milhões de contas no sistema bancário. Mas o Coaf recebe apenas 300 a 500 comunicados ao mês referentes a operações suspeitas provenientes de instituições financeiras. Nos últimos dois meses, foram feitas dez averiguações criminais em factorings e duas em imobiliárias. A título de comparação, os órgãos de combate à lavagem de dinheiro nos Estados Unidos recebem 2 milhões de comunicados de operações suspeitas ao mês, sendo que 409 mil são investigados e desses, 2,44% se transformam em denúncia. Segundo Caramuru, no Brasil a média de comunicados recebidos que se transformam em inquéritos e ações penais é de 2%.

Cristine Prestes